cruzamentos

Preciso sair para caminhar. Não se trata de gostar, tal como dizem alguns, “eu amo caminhar, ah, o ar puro!”, não, eu preciso caminhar, e só. É esse tipo de necessidade para a qual não temos explicação pontual, mas que com o tempo aprendemos a respeitá-la. Possivelmente tenha algo com o movimento em si. Sinto que meus olhos precisam de mais espaço do que me permitem os quarenta metros quadrados onde passo boa parte da minha vida. E, quando chove, ou estou muito cansado, navegar sem destino pela internet, embora não tenha os mesmos resultados, funciona também como um ponto de fuga ao meu olhar.

Foi o que eu fiz hoje, depois de chegar de mais um dia de aula. Mais um dia, outro dia.

Depois de um tempo de caminhadas começamos a perceber o que se repete nos caminhos, e os caminhos que repetimos. O que tem me incomodado nessa repetição não é a repetição em si, se não o que desconfio que seja o articulador dessa maquinaria, a mente. Anos lecionando, e repetindo caminhos, não me colocaram num ponto de encontro com o pensamento oriental, por exemplo (e é esse o ponto que tem me angustiado: os pontos aos quais não chegamos por seguirmos as mesmas linhas!).

Não posso afirmar por qual motivo, mas a mesma ausência de sentido que me faz sair para caminhar sem destino (ainda que em poucas dezenas de minutos retorne à caixa a qual chamo morada), me fez desviar de minhas linhas de leitura e, numa livraria com a qual cruzei por acaso, e na qual por acaso senti necessidade de entrar, por um motivo qualquer olhei para o livro “Mente Zen, Mente de principiante”. Isso foi anteontem. Hoje, o livro já lido está ao meu lado.

Quero ainda fazer um destaque quanto a livraria: ela se encontra a duzentos metros da minha casa, e eu não a conhecia! Claro que pensei que tivesse inaugurado a pouco tempo, ao que a atendente me respondeu: “completamos em dezembro treze anos”. Eu moro aqui há quatro anos.

Hoje, navegando por vias incertas, entre cliques diversos, encontrei um site que se chama “Unoego” (ou algo que se chama “Unoego” e tem um site). Minhas passagens por esse cantos virtuais são rápidas, e só me atenho em algum ponto que por algum acaso motive a fixação do meu olhar. E lá estava o texto “A Cidadezinha”.

Talvez eu esteja a falar sobre caminhos por que o texto tenha me solicitado, uma vez que é disso que, em minha leitura (e na minha escrita que se faz na leitura), se trata: caminhos. Ou talvez por ser isso que tenha lido também no livro que anteontem, ao caminhar, encontrei. E pelos caminhos que nos levam aos mesmos lugares, com uma certa dose de vertigem, percebo ser este um tema que me chama atenção nos textos filosóficos que mais me são caros: os caminhos, mas mais precisamente, a ausência deles – que não significa sua falta, mas a possibilidade de sua invenção. Pois se abro o “livro zen” numa página ao acaso, encontro o que me leva de novo ao texto: “Assim, pois, é absolutamente necessário para cada um acreditar no nada. Mais isso não é niilismo. Algo existe; porém esse algo está sempre pronto para assumir alguma forma particular e tem certas regras, princípios ou verdade em sua atividade” (SUZUKI, 1994, p.113). Página 113, a livraria acaba de completar 13 anos, faz 1 mês.

Na Cidadezinha está escrito: “Esta é uma história de bolas rodando, portanto aja como um gato: esqueça a tacada e suas intenções e se concentre nos efeitos”. Eis o ponto (talvez um ponto qualquer): o caminho vale por seus efeitos, pela imprevisibilidade dos encontros. Ainda assim, no que surge neste nada, há algum princípio. Assim então, não é por acaso que eu me afeto pelo texto, entre tantos dispersos pela internet.

E isso que me afeta na história a faz ser minha, ainda que não seja. Esse meu que é meu ainda que de outros; e deste outro eu que caminha pelas ruas, que não é o mesmo que vai às reuniões de professores.

E aí o pensamento me encaminha a outro texto, o qual me questiona e me tenciona não para desviar dos caminhos, mas para perceber que os caminhos não são os mesmos, mas são assim vistos por uma mente que intenta dar formas ao nada a partir do que possui, da memória, apesar da incerteza presente em cada reaparição: “Pois a incerteza pessoal não é uma dúvida exterior ao que passa, mas uma estrutura objetiva do próprio acontecimento, na medida em que sempre vai nos dois sentidos ao mesmo tempo e que esquarteja o sujeito segundo esta dupla direção. O paradoxo é, em primeiro lugar, o que destrói o bom senso como sentido único, mas, em seguida, o que destrói o senso comum como designação de identidades fixas” (DELEUZE, 2007, p.3).

Como se pode ir em duas direções ao mesmo tempo? Paradoxalmente pode-se. Foi isso que senti com a personagem que sai de “sua” cidade e “seu” trabalho e vai para um ponto qualquer, uma cidadezinha. Pode ele nisso estar se distanciando de si e ao mesmo tempo estar se aproximando? “O movimento nada mais é do que a qualidade do nosso ser” (SUZUKI, 1994, p.101). 1, 0, 1, 0, 1, 0, 1.

Ao ler o texto parece que estamos tentando entender o porquê dessa saída que, sem embargo, inaugura uma chegada: o que faz esse estranho estar numa cidade e que cidade é essa? E o próprio texto se antecede ao desdobramento desses pensamentos: “Por favor, não busquemos esmiuçar as circunstâncias sufocantes que o fizeram fugir e, assim, acenderam esta história. Cada um pode muito bem imaginar as suas, ainda que não sejam necessariamente suas”.

E nisso estamos aqui, escrevendo para não encontrar os porquês. E esse por que agora escrevemos nos leva a outro texto: “A inocência é o jogo da existência, da força e da vontade. A existência afirmada e apreciada, a força não separada, a vontade não desdobrada, essa é a primeira aproximação da inocência” (DELEUZE, 1976, p.14).

A imagem de sair do apartamento e caminhar sem rumo para encontrar uma luz qualquer, e que deixou de ser qualquer por, nalgum motivo qualquer, ter se destacado entre as outras. E de caminhar sem rumo certo, ainda que na espreita desta luz. Talvez seja isso a escrita, ou essa escrita a que sou convocado, cada vez mais: uma que caminha sem rumo e sem porquê. Isso é mais que suficiente. Não são necessárias nomeações além disso: basta uma pequena luz, ou a suposição dela, e o ímpeto de buscar.

Assim, por esses caminhos nos cruzamos, e lhes envio esse texto para que possa ser publicado também nesse site por onde caminhei (eu, um caminhante, sem nome, e isso deve bastar).

 

Livros citados:

DELEUZE, Gilles. Lógica do sentido. São Paulo: Perspectiva, 2007.

DELEUZE, Gilles. Nietzsche e a Filosofia. Rio de Janeiro: Editora Rio, 1976.

SUZUKI, Shunryu. Mente Zen, Mente de principiante. São Paulo: Palas Athenas, 1994.

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