o pássaro e Antônio

o pássaro seguia quieto, quase imóvel. Antônio ao lado a dormir, deitado ao gramado sobre uns pedaços de panos que usava como travesseiro e vestindo uns trapos rasgados; todos jogados ao chão como pedaços de coisas que outrora foram outras – mais inteiras, mas ainda pedaços.

“Já li muitos livros” – me diz Antônio, já acordado com os efeitos de meus barulhos – “conhece García Márquez?”

Eu aceno que sim com a cabeça enquanto ele já me apresenta seu largo conhecimento acerca da geografia da cidade: “Desde a rodoviária até a avenida Bento!” E eu a pensar se deveria levar o filhote ao meu apartamento ou deixa-lo ali, na espera de que seus pais o cuidassem.  Pensava se os pássaros tinham em suas faculdades intelectivas a noção de causa e efeito, bem como percepção temporal; se a mãe ao retornar ao ninho se colocaria a procurar seu filho ou, ao vê-lo vazio, teria nisso um fato natural ao qual nada significa, como se sempre estivera assim, numa vida sem memória.

“Tenho formação em Administração, estou na rua por causa da maldita.” Entendi que ele se referia a cachaça (e ela a nos observar, ao lado de Antônio, quieta e generosa sempre disposta a se doar num próximo gole).

Pensava que nunca havia entrado naquela praça e tão logo atravessei o portão, todo um novo universo se instaurou, poucas portas ao lado do espaço que aprendi a chamar de casa. Percebo que não sei nada sobre pássaros, que já sei muito sobre Antônio, e que ele me lembra um tio avô, e que não faz muito sentido eu tentar salvar uma pássaro se na noite anterior matei uma barata. Mas é fácil encontrar sentido nisso: uma barata é um ser nojento que vive pelo chão. “Como é bom conversar com alguém, a maioria das pessoas desviam de nós.”

E o que isso tudo diz da vida? Nada. Não diz nada. Naturalmente ouvimos coisas, ouvimos a nossa cabeça. Dizemos a nós mesmo o que outrora ouvimos. E quanto vale um pássaro com uma asa quebrada? E seu Antônio com os 12 reais que tem no bolso e que afirma dar a beber até o amanhecer? E quanto vale eu a quem seu Antônio agradece os vinte reais (já no dia seguinte, quando ele acorda da bebedeira e me diz precisar de dinheiro para comprar passagem, pois decidiu voltar para casa e conversar com a família)? Quanto vale 20 reais e porque o dinheiro é meu? Fácil encontrar sentido, o dinheiro saiu do meu bolso, logo é meu. O pássaro caiu do ninho. Seu Antônio caiu na rua. E eu devo ficar feliz por ter uma casa; mas e se vejo na rua possibilidades que meus limites restringem? E se vejo no trágico da queda uma latência de vida que se nega à ilusão da beleza imaginada no vôo libertador?

Seu Antônio se despede. “Sabe, encontrei ali no chão um pedaço de Bíblia, era Mateus 7:7: Pedi, e dar-se-vos-á; buscai, e encontrareis; batei, e abrir-se-vos-á”.

E eu a pensar: abrir para onde?

Não sei o que vai acontecer com o pássaro.

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