Adeus, Cardoso

Três anos trabalhando ao lado do Cardoso me fizeram entender umas coisas fundamentais. Tão fundamentais que, ao entendê-las, me falta entender como vivi sem sabê-las durante esses dezoito anos – dezoito, digo, antes começar a trabalhar com o Cardoso. Primeira coisa: as pessoas são estúpidas. Assim, sedimentado em uma sentença ordinária, é um pensamento insípido, mas é preciso deixá-lo florescer em nosso cotidiano, como se trazê-lo constantemente ao nosso consciente o tornasse um axioma inconsciente, de alguma forma mesclado com o nosso pão, nossa gentileza, nossa roupa, mesmo nosso amor e nossa paz. O próprio Cardoso nunca chegou a me ensinar isso diretamente. Nunca o ouvi dizer: “as pessoas são estúpidas”. É simplesmente algo que vai soterrado em suas ações e seu olhar, no desprezo que despende atenciosamente a todos nós e, em última instância, a si mesmo.

Cardoso e eu trabalhamos em uma revenda de carros usados e semi-novos, a Godoy’s Car. Pouco inteligente desde a perspectiva anglófona, é um nome que curiosamente persiste em funcionar no Brasil, particularmente para uma revenda de carros no interior de Minas Gerais. Estou neste país há três anos e ainda me surpreendo com essa coisa de nomes por aqui. No caso da Godoy’s Car, não se trata nenhum esnobismo ou estrangeirismo inconsequente, que afinal só faria sentido se o batizador e dono do negócio, o Godoy, tivesse qualquer afinidade ou interesse pela cultura de Inglaterra e derivados. Esse título não responde sequer a uma noção de internacionalização ou globalização, por caricatural que viesse a ser. Não: esse é um título brasileiro, feito exclusivamente para brasileiros. É praticamente xenófobo e está, por assim dizer, forjado no mais autêntico e avançado português, que é precisamente aquele que se faz esfarelado, poroso, agressivo. Quando comecei a buscar emprego, esse nome foi algo que captou minha atenção (mais do que um presumível interesse por automóveis ou pelo comércio), porém não reparei no inglês nem no português, mas sim no russo ou qualquer coisa de Europa Oriental que me saía ao imaginar a pronúncia, algo como Godóiskar, dito de forma seca e inexorável, como a sentença de um destino. A imaginação sonora desse nome me divertiu o suficiente para entrar sorridente e pedir ao Godoy uma posição qualquer na loja. Um ano mais tarde, já bem estabelecida na revenda como comerciante, cheguei a sugerir ao Cardoso que mandasse o Godoy à merda e lançasse sua própria empresa, a Car d’oso – para completar a salada de idiomas, ficaria bem um urso como logotipo ou mascote da empresa. Ele me evadiu com poucas palavras, e assim fui percebendo que sua inteligência não era do tipo que cultiva ambições financeiras ou sociais. Aí nascia a segunda coisa que o Cardoso me ensinou, porém antes de apresentá-la quero terminar de pintar o contexto.

Dada minha inexperiência no ramo, fica claro que Godoy não me contratou pelo currículo. Basta me imaginar aos 18 e cursando um obsoleto bacharelado em História para entender que venda de carros usados não casava nem com minha cara, nem com meu comportamento aparente. Já disse que fui atraída pelo nome do estabelecimento, o que mostra inequivocamente a efemeridade da minha “busca” por um emprego. Godoy, por seu turno, deve ter se interessado em minha condição de mulher ou, melhor, de menina estudante, com aparência mais ou menos bonita e um sorriso divertido. Não digo que Godoy tenha se interessado em mim física ou sexualmente – apesar de bastante expansivo, o chefe nunca se meteu a bobeações que não correspondem ao papel de empresário visionário que concebeu para si. Ele se atraiu por mim trabalhando na Godoy’s Car, a primeira vendedora contratada pela empresa, emprestando ao front de vendas um ar familiar, de proximidade e, finalmente, confiança. Mas tinha esse problema de eu não saber nada sobre carros ou vendas, portanto o Godoy me pôs a trabalhar no escritório, secretariando e organizando, como “fase de testes”.

Foi assim, secretariando e organizando, que conheci o Cardoso. Já insinuei que a compreensão da estupidez generalizada entre as pessoas não resultou de uma epifania pontual nem de uma transmissão objetiva de conhecimento dele para mim, mas de um longo processo de observação e interação entre eu e Cardoso. Foi uma espécie de incorporação silente de todo um sistema de conceitos impronunciáveis, muito embora as palavras conversadas tenham sempre me ajudado de forma indireta. E esse processo começou imediatamente ao nosso primeiro contato, quando o Godoy nos apresentou. O chefe despejou entre nós as frases corriqueiras sobre minha juventude, meus estudos universitários e meu potencial, concluindo pretensamente surpreendido por eu ter aparecido numa revenda de carros, um negócio tão rude, ainda que tenha apreciado minha predileção pelo diferencial da Godoy’s Car – ele não se animou a definir esse “diferencial”. O Cardoso então me deu as boas-vindas e disse que essa rudeza possivelmente me caísse bem. Ele disse isso ao Godoy, sem olhá-lo nem esperar uma resposta sua, como se apenas usasse a sua presença como um trampolim para a frase pronunciada. Tampouco pareceu estar querendo dizer algo a mim, portanto sua frase saltou em direção ao vazio, como uma provocação à espera de um outro jogador, que a colhesse e deturpasse seu sentido. Eu não soube o que responder e, de qualquer forma, o Godoy seguia seu curso e me apresentava aos outros dois vendedores, o Caetano e o Kandinsky, e também à faxineira, cujo nome é Marilene mas todos chamam Santa.

Nomes são coisas que me fascinam, acho que isso já ficou evidente. Em geral, fico perplexa sobretudo com a arbitrariedade dos nomes ou, como no caso da Godóiskar, com a quantidade de sentidos disparatados que vão ficando sobre eles, como resíduos mal descartados. Há 21 anos me deparo inutilmente com meu próprio nome. Antônia. Às vezes fico me olhando no espelho e o repito em voz baixa. Antônia, Antônia, An-tô-nia. Não tem sentido, é arbitrário em relação à minha face. Não sei que relação eu poderia ter com a família Antonius na Roma Antiga, com o destino melodramático de Marco Antônio, ou com a abnegação de Santo Antônio, qualquer que fosse. Aliás, não sei quando nem por quê esse nome passou para o gênero feminino. Por fim, não sei por que esse nome recaiu sobre mim, e por que minha irmã, por exemplo, veio a se chamar Lucila. Creio que foi meu pai que veio com Antônia, porém hoje ele não é mais que um fantasma em minha vida, portanto já não poderei perguntar. Outro exemplo: há anos atrás perguntei à Santa a história e a causa de seu apelido. História: “acho que começaram a me dizer Santa nas reuniões de família. Aí o Godoy ouviu meu marido me chamar assim e levou o nome também para o trabalho. Pronto”. Causa: “nem lembro se teve uma causa, menina”. Não sei como as pessoas não reparam em carregar seu nome por toda a vida. De minha parte, volta e meia alguém me chama e, involuntariamente, me vem de novo esse pensamento sobre Antônia, o nome, e Antônia, eu. Mas está claro que isso é um problema meu. Contanto que cumpra sua função comunicacional, nomes não precisam fazer sentido. Faz sentido, admito.

Entretanto, a segunda coisa que passei a entender durante esses anos de trabalho ao lado do Cardoso é a seguinte: quanto mais sentido fazem as coisas no senso comum, mais elas sofreram deturpações sem sentido ao longo do tempo. É o caso do dinheiro, por exemplo, que rege a grande maioria de nossas ações cotidianas. Tudo o que fazemos para subsistir existencial e materialmente depende de coisas sem sentido. Vender carros, andar de carro, melhorar currículo, ter contatos, dividir a vida entre os setores de carreira, paixão, família, entretenimento e planos futuros. Quando as coisas ganham nome e função prática no viver, é justamente porque perderam qualquer sentido plausível. É como o Kandinsky, o nosso outro vendedor, cujo nome na verdade é Armando Kulckzinsky. Todos na Godoy’s Car o chamavam mais ou menos pelo nome certo – culzinsqui, culquizinsqui… inicialmente, o Caetano chegou a tentar emplacar um simples “culqui”. Finalmente, a enorme reprodução de um quadro de Kandinsky, pendurada na parede da sala de atendimento e sob a qual figura bem grande o nome do pintor, acabou por impor-se imperceptivelmente ao nome original do vendedor. Assim, sem nenhuma combinação do grupo, sem sequer uma constatação oficial do fato, Kulckzinsky foi sendo paulatinamente batizado Kandinsky. A que vem esse apelido? O que poderia explicá-lo, senão um acúmulo de arbitrariedades sem origem nem destino? Aí está: quanto mais as coisas existem no mundo, menos elas fazem sentido. E, mais uma vez, essa consciência é algo que subjaz às ações do Cardoso, mais do que algo propriamente formulado. Não sei se fui a única a compreender essas questões (será tudo uma ilusão?), afinal ninguém pareceu intrigar-se com sua parcimônia, simultaneamente desdenhosa e prestativa. Nem com seu olhar, que nunca se põe sobre as coisas ou sobre as pessoas, mesmo quando as vê cara a cara. Admito que fico um pouco obcecada, ao ponto de, neste momento, querer fundir isso em palavras. Porém me é impossível pensar que não há nada por trás da existência do Cardoso.

É precisamente aqui que se impõe uma questão central, que é afinal o curto-circuito de minha obsessão. Para satisfazer a um capricho formal de raciocínio, prefiro chamá-la de terceira coisa que passei a entender através do Cardoso. Mas não é mais algo que está em suas ações. Trata-se de uma síntese assustadora, que eu mesma elaborei. Pois, se as pessoas são de fato estúpidas, e se as coisas que fundamentam racionalmente nossa existência e ações perderam sentido ao serem construídas, então a vida deve estar em outro lugar. Ao me ensinar involuntariamente suas lições, Cardoso me constrange a decifrar um enigma assombroso: estando ele ali, sentado à mesa e revisando notas fiscais, qual é afinal a sua verdadeira existência? Onde está o Cardoso, ou melhor, para colocá-lo da forma mais crua possível, o que é o Cardoso?

Ele vai embora hoje. Desta vez, todos ficaram intrigados quando o Cardoso pediu ao Godoy um momento de conversa privada em seu escritório. Agora são cinco e quarenta e sete da tarde, mas isso da conversa foi há dois dias atrás. O Cardoso entrou no escritório e o Godoy fechou a porta. Depois de alguns minutos, saem os dois. O Godoy então anuncia que Cardoso pedira demissão, que comprara à vista o Corsa 2009 cor prata dos fundos – um carro que estava na revenda há meses e ninguém conseguia vender -, que pretendia sair em uma viagem, portanto deixava o trabalho. Isso foi há dois dias, agora são cinco e cinquenta. Em dez minutos fechamos. Na ocasião do anúncio, Godoy terminou de falar e todos ficamos olhando para o Cardoso. Dava para ver um princípio de comoção na sua expressão, não mais que isso. Então ele disse: “é algo que preciso fazer, mas não quero partir sem deixar claro que sempre gostei de cada um de vocês (e foi olhando um por um): Godoy, o chefe; Caetano, Kandinsky, Santa; Antônia”. An-tô-nia. Um princípio de comoção, não mais que isso. Foi há dois dias. Desde então ninguém consegue agir em total normalidade, como se os demais começassem somente agora a intrigar-se com o Cardoso. Como se inaugurassem um caminho que eu já percorro há três anos.

Seis da tarde, hora de fechar e ele vai embora hoje. Não consigo fazer sentido disso. Vai viajar pra onde? Como pode precisar viajar para algum lugar, se acima de tudo estão essas coisas que me fez entender? Qual o sentido de viajar… de o Cardoso precisar viajar? Um a um, ele nos cumprimenta por última vez e sobe no Corsa prata 2009 dos fundos. O Caetano cuidando de abrir o portão. São seis e oito – eu sei porque vou cuidando de seguir o relógio redondo da parede. O Kandinsky ainda entrega uma garrafa de vinho gaúcho ao Cardoso, como presente de despedida. Ao receber, este devolve-lhe exatamente o mesmo olhar de sempre. Não consigo fazer sentido disso. Vou me aproximando do Corsa, caminhando já a passos largos, pois deu a partida no carro. E me viu chegando. Vai abrir o vidro…

“Viajar pra onde, Cardoso?”

Não sei, mas é pra não voltar.

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