Já faz quase cinco anos que vivo e sou visto como um beriboé. Desde aquela terrível noite que, agora o sei com certeza, quebraria minha vida em duas partes, tenho me esgueirado por entre prédios, com meus óculos escuros e meu cachecol, que forço sobre o pescoço mesmo em dias mais cálidos. Dentre todas as coisas perdidas, sinto falta principalmente daquelas mais insípidas e cotidianas, aquelas que se fazem enquanto se pensa em outras coisas. Ir à padaria, por exemplo, tornou-se uma epopeia interminável, cujos episódios são diários. Levanto-me muito cedo e tento encontrar uma padaria nova para mim no google maps, coisa rara de acontecer; depois devo me deslocar até lá, e geralmente esse lá é longe – já quase não me arrisco a caminhar pelo meu próprio bairro; uma vez chegado à padaria, preciso analisar o ambiente em uma fração de segundo e começar a interação com a pessoa que me atenda, buscando passar incólume por seu olhar. Incomoda-me, sobretudo, a impossibilidade de fazer conversa miúda, de perder tempo e observar as coisas, ao invés de ser observado. É a ansiedade, mais do que o fato de eventualmente ser tachado de beriboé, aquilo que me está levando à loucura: a ansiedade constante é como esse cachecol que aperto sobre a garganta e não consigo desvestir, e que às vezes me faz desejar que aconteça o pior, contanto que alguma coisa aconteça.
Mas não quero deixar a impressão de que minha vida atual é um inferno, pois não acho que seja assim e nem diria que sou infeliz. Desde a infância tenho em mim uma aptidão para a resignação que, mais tarde, entendi ser excepcional. Meu pai foi gerente de banco, e seu serviço levava a família inteira a mudar-se de cidade a cada dois ou três anos. Brinquei com tantos amigos que não saberia contar, porém todos eles surgiam e desapareciam de minha vida nessa constância bienal, e perdê-los me era tão fácil quanto ganhá-los. Anos mais tarde, quando estava no auge de meu reconhecimento e fama midiática, alguns desses amigos de infância chegaram a me procurar no facebook, mas nunca respondi nem adicionei nenhum deles ao meu perfil. Minha vida havia mudado e, assim como todas as cidades em que morara durante a infância, nunca me pareceu razoável nem interessante revisitar as pessoas do passado.
Lembro bem da ocasião em que o Banco foi privatizado e meu pai despedido, bem no Natal de 97. Eu contava então 19 anos e já estava com vaga garantida no colégio de arquitetura da Cornell University. Mais do que a perda do emprego, meu pai estava desolado por ter de anunciar que minha viagem a Nova Iorque não seria mais possível. Ele nem conseguia olhar direito o meu rosto enquanto me contava a situação, e eu, no entanto, ao mesmo tempo em que tomava conhecimento do cancelamento de meus planos para os anos seguintes, já fazia as pazes com o destino. Afetei uma tristeza maior do que a que sentia, para acompanhar o tom solene que meu pai pôs à conversa, porém já pensava em novas mudanças para minha vida nos meses subsequentes. Hoje, por causa do ocorrido há quase cinco anos, meu pai não fala mais comigo, e gostaria de ter-lhe aliviado o fardo que ele mesmo se impusera na ocasião de sua demissão.
É curioso, aliás, pensar que o fato de não ir aos Estados Unidos possibilitou minha iniciação à atuação, primeiro no teatro e depois no cinema, que afinal consolidou minha carreira como ator. Ainda em 98 comecei a participar em oficinas de atuação cênica e tudo começou a se desenrolar naturalmente a partir daí. Credito à minha resignação, uma vez mais, o sucesso advindo da atuação: a cada papel que assumia, aceitava-me plenamente como sendo o meu personagem e acolhia com gosto a possibilidade de mudar sempre de novo. Atuar, para mim, era a perpetuação de minha infância, de meus amigos, de minhas casas, colégios e situações, simultaneamente intensos e passageiros.
O reconhecimento de meu trabalho foi uma rampa crescente do começo ao fim de minha carreira, primeiro por parte da crítica especializada e finalmente por parte de um público cada vez mais amplo. É sabido que minha linha de atuação não era o cinema dito “de entretenimento”. Desde o começo fui percebido como um ator de filmes pretensamente mais sérios, de dramas psicológicos ou, também, de cinema experimental. Mas isso não impediu que, no auge de minha carreira, eu fosse reconhecido como celebridade, definitivamente respeitado e presente no cotidiano da mídia. O ponto culminante de tudo isso foi, claro, minha atuação em Cartas a um desconhecido, o mesmo filme que, de certa forma, levaria tudo por água abaixo. A cena em que meu personagem mata a menina dos correios, simples mensageira de sua ruína, é ainda hoje celebrada e tida como emblemática na história do cinema. Ela foi gravada em tomada única, e tenho nítida na memória a aura do momento, principalmente de minha última frase antes de disparar, “nenhum de nós dois pode controlar o que vai acontecer a partir de agora”. Pá, um disparo e o enquadramento sai do plano próximo, nos abandona e começa a viajar pela rua até ser ofuscado pela luz solar. Acho que o encanto da cena provém do fato de eu, assassino intempestivo, desembrulhar uma tristeza escondida por cima do ódio, justamente quando à beira do crime.
Ninguém se surpreendeu com minha indicação ao Prêmio Nacional por Cartas a um desconhecido e, de fato, todos contavam com minha premiação. Nem parece que se passaram quase cinco anos. Quando anunciaram meu nome, uma euforia alucinante tomou conta de mim, e confesso que nem prestei atenção em Marta e na minha pequena Antônia, sentadas ao meu lado. Aliás, quando penso que essa foi a última vez em que vi Antônia, minha memória fica em curto-circuito sobre esse breve instante em que me levantava e passava por ela, tentando concretizar uma última recordação que, afinal, não existe. Eu não reparei em absolutamente nada, apenas saí vibrante em direção ao microfone, quase saltando, sentindo-me carregado até o placo por uma imensa onda de aplausos. Antes mesmo que as palmas cessassem, entrei a falar em uma torrente de palavras descontroladas, a maioria delas hoje ausentes de minha memória. De fato, a única frase que consigo lembrar ficou cravada na minha mente em forma literal. Trata-se de uma declaração feita à minha esposa, que veio a ser também a sentença de minha carreira. Eu disse: “… e a Marta, meu amor, não posso expressar adequadamente minha alegria neste momento. Isso vai ter que esperar um pouco. Já aviso que, chegados em casa, vou amarrar-te em nossa cama e de lá só sairás daqui a cinco dias!”. Lembro ainda que esse dito causou certa estranheza no público, mas estou seguro de que foi algo passageiro, que interpretei, naquele momento, como uma espécie de choque elétrico – mas num bom sentido, como um frisson provocado pelo conteúdo picante da frase. É engraçado pensar que até hoje não entendo bem o que quis dizer com essa declaração. É algo que me surgiu do nada, no meio de um vendaval de ideias que sacudiam minha cabeça. Na sequência, fiz agradecimentos genéricos à equipe de Cartas a um desconhecido, saudei a plateia e encerrei o discurso, retornando ao meu lugar sobre uma nova onda de aplausos.
Não escutei o restante da premiação, pois seguia em um estado de encantamento desvairado. Não lembro se por acaso disse algo a Marta, nem se ela me parabenizou ou comentou alguma coisa do evento, qualquer fosse. À saída, concedi o obséquio de falar com os jornalistas. Os flashes incessantes dos fotógrafos assaltavam meus olhos e contribuíam para que eu permanecesse nessa embriaguez de sentidos, sentindo-me extremamente livre do restante do mundo, como se estivesse prestes a voar. Ia respondendo perguntas com frases elaboradas, quiçá completamente destituídas de sentido para quem hoje pegar e escutar a gravação desse momento. Foi então que uma jovem e desconhecida blogueira, nos seus vinte e poucos anos, perguntou, quase gritando: “e aquela declaração à sua esposa? O que você quis dizer com aquilo?”, ao que eu respondi: “quis dizer que ela é minha varicoteia”. Minha resposta caiu como um manto pesado sobre todos aqueles que puderam ouvi-la, e espalhou-se rapidamente por todo o teatro, e não muito depois por todo o país. Os flashes cessaram repentinamente e, apesar de as luzes do hall continuarem acesas, tive a impressão de estar sob uma penumbra densa, que mal me permitia ver as inúmeras bocas abertas em minha direção.
Naturalmente senti que havia dito algo mal, porém a confusão e o contraste de sentidos eram demasiados para que pudesse reagir ou simplesmente entender a situação em que me encontrava. Lembro-me de, atônito, tentar me desvencilhar das pessoas que me rodeavam, porém o choque que atingira a todos não durou mais que uns segundos, e logo ressurgiram os flashes, agora ainda mais enfurecidos, e as perguntas, igualmente agressivas. Mais uma vez, quem porventura assistir às gravações deste momento não encontrará em mim senão um completo babaca, balbuciando palavras desarticuladas e tentando enxergar, por sobre a nuvem de cabeças que me rodeavam, minha esposa e minha filha.
Não é necessário relatar em detalhes o que aconteceu depois, pois o caso foi trending topic nacional e, segundo ouvi dizer, teve também alguma repercussão em outros países. Desde esse momento até hoje, convivo com a maldição de ter a palavra beriboé associada a qualquer comentário que se faça à minha pessoa, na imprensa ou na rua – até mesmo na padaria, se reconhecido eu for. Nunca mais reencontrei Marta, apenas seu advogado. Acho curioso observar que certos tabus sociais adquirem uma força condenatória tão grotesca que os códigos penais chegam a parecer tímidos frente ao ódio popular. Fui condenado por beriboelação em primeira instância, não recorri e ainda assim tive minha sentença decretada em apenas 6 anos de prisão, além das indenizações devidas. A tudo vivi com uma apatia ilimitada, tanto que entrei em liberdade após dois anos de cadeia, mediante pagamento de multa. Desde então, vivo me esgueirando, como talvez outros beriboés por aí. Não procurei Marta, por respeito à sua decisão de não aceitar absolutamente nada de mim, nem sequer a pensão. Para compensar a falta total de uma mulher em minha vida, acabei comprando um Difusor de Casais, que me tem sido muito útil, pois com ele evito ficar remoendo o passado. De vez em quando, porém, vou ao Google e digito “Antônia Fraz” para, ocultamente, buscar descobrir a vida que a minha filha leva. Até onde pude rastrear, ela havia se mudado para o Brasil e trabalhava em uma revenda de carros em alguma cidade interiorana.
Nestes anos de liberdade, também acompanhei diligentemente o blog da menina que me levou à ruína. Três meses após o fatídico episódio, eu já era passado para todo mundo, e permaneço ainda um passado em que ninguém pensa, mas que todos lembram de forma homogênea, pois está condensado e etiquetado nesta palavra: beriboé. A blogueira, como era de se esperar, logo seguiu para outros assuntos, e hoje se dedica a comentar eventos de jogos eletrônicos. Bem sei que não possui culpa de nada, mas os últimos cinco anos produziram em mim um ódio frio e quieto, porém não por isso menosprezável. Mesmo agora, enquanto escrevo estas linhas, tenho aqui ao lado o revólver carregado, que comprei há meses, com a intenção de matá-la. Nunca o fiz e não creio que o venha a fazer. Quero que me entendam: meu motivo não seria propriamente a vingança ou o descarrego, mas sim a vontade de mudar novamente. Já vão cinco anos que vivo como um beriboé, e creio que meu organismo está definitivamente educado a se transformar a cada dois anos, exatamente como ocorria na minha infância. Nem está tão mal ser um beriboé: por um tempo foi até divertido brincar de esconder com o resto da humanidade. Mas já não suporto a impossibilidade de mudar, de não ter opção senão continuar sendo um beriboé. Mesmo que viesse a matar a menina e retornasse à cadeia, ou mesmo que virasse um prófugo, seria ainda beriboé. Não, estou ciente de que me resta apenas uma última mudança a ser feita e, como sempre até aqui, já fiz as pazes com o destino.
Em toda essa sucessão de episódios desconexos que constitui minha vida, há apenas um ínfimo detalhe que me provoca a comoção profunda do arrependimento. Nunca pude explicar a Antônia o motivo pelo qual escolhi seu nome, mesmo apesar da contrariedade de Marta. Planejava fazê-lo quando minha filha fosse adulta, porém já se vê que a sucessão dos eventos não o permitiu. Houve uma Antônia em minha pré-adolescência, uma menina por quem me apaixonei e, creio, foi depositária do único amor sincero de minha vida, ainda que pueril. Assim como todos os meus amigos, Antônia saiu de minha história com alguma mudança, porém foi a única a permanecer como um afeto, que afinal voltou a se expressar como nome de minha filha, a quem eu também verdadeiramente amei. Veja-se que, em meio a todo esse desfile non-sense que vi passar, uma coisinha foi constante e talvez me acompanhe quando deixe definitivamente de ser um beriboé. Essa coisinha se chama Antônia: primeiro uma paixão, depois um amor, finalmente (e talvez para sempre) uma dor.