O que eu poderia contar desta viagem entre tantas imagens, tantos pensamentos e fatos? E como representar os fatos, ou apresentar os pensamentos de outrora, ou ao menos esboçar imagens que dê a ver uma ideia do que vi? Se desde já devo dizer que não sei ao certo o que foi que vivi (desde que passou, em verdade); e me perco justamente aí entre o que de fato aconteceu, entre as minhas expectativas anteriores ao acorrido, e a tentativa atual de separar as coisas deste passado sem me perder do presente – que também passa, e do qual precisarei me lembrar no futuro. E se tenho dúvidas quanto a mim, quanto ao que me interessa memorar em meu memorial mental, ou em compreender o que e por qual motivo memorizei, o que posso eu dizer do que penso em dizer para outrem do que vivi eu? E o que a este pode interessar? Contarei então como se contasse para mim uma história de um outro (mas em verdade é a minha história). Contarei como se soubesse o que gostaria de ouvir (e de fato suponho que sei). E contarei como se fosse um outro. E lerei como se estivesse escrevendo agora, enquanto leio.
Foi uma longa viagem, mas agora me parece tão curta. Quando iniciou eu não sabia onde ela ia dar, onde ia terminar, onde iríamos parar. Ao chegar à entrada, sempre com a sensação de atraso e com uma certa angústia que entendo seja esse desajuste na garganta, procurei a linha que deveria tomar. Peguei o papel, procurei as informações e me direcionei para o ponto de embarque. Caminhava e tentava convencer a mim mesma de que não havia esquecido nada, enquanto refazia a lista em minha cabeça. Duas entre cinco pessoas por quem passava pareciam familiares. Perguntava-me se tinha regado as plantas, desligado o gás, a geladeira, recolhido as roupas. O relógio me apresentava cinco minutos para a saída, tomei um lanche qualquer e queimei a língua com café.
Porque me contas esses detalhes da viagem, do embarque? O que isso interessa? Bom, passaremos então para outra parte.
O lugar era lindo, realmente fiz uma boa escolha. Pena ter vindo sozinha, pensava. Em verdade estava orgulhosa, mostrava autonomia e coragem. Mostrava pra quem?
Outra parte.
Fiz por bem levar um livro, era uma sensação de leveza sentar e apreciar a paisagem, a brisa que ameaçava virar a folha sobre a qual eu me perdia entre a narrativa. Com as palavras ia sem saber onde elas me levariam. De alguma forma, sentia como se fosse eu a escrevê-las a cada nova palavra lida – era eu quem escrevia! Eventualmente um suspiro me fazia levantar a cabeça e avistar a paisagem, um transeunte, outro bichano pouco visto em meu habitat natural, ou uma nuvem que encobria o sol e sob a qual eu afastava meus óculos escuros para ler a próxima página.
Você conhece Estevan? A pergunta surgiu como feita num inquérito, num tom impositivo que parecia ter a certeza de um sim como resposta. Eu pensava: que Estevan, que Estevan?! Eu pensava: eu devo conhecer Estevan! Sem jeito respondi que não. Ele seguiu a caminhar, sem ao menos agradecer ou dizer seu nome, ou alguma pista sobre Estevan. Em suas costas, enquanto se afastava, pude mirar uma tatuagem: um símbolo que não compreendi, mistura de formas geométricas com linhas irregulares cruzando as formas regulares em traços imprecisos. Eu segui meu trabalho, pedi a Juliana que me trouxesse mais um pacote, empilhando o que acabará de terminar ao meu lado esquerdo. Que Estevan?!
O sol iniciava seu último percurso: aquele preciso momento onde toca o horizonte e acelera numa queda vertiginosa até sumir num ponto abaixo do limite da paisagem. O sol dentro da terra. As palavras se fecham dentro do livro e eu retorno antes que o frio ataque minha pele.
A viagem está quase terminando. Meu último dia, talvez o mais intenso entre tantos outros. Atenho-me a um fato talvez qualquer, talvez o menos relevante deste dia, mas que a mim tem grande valia por sua imprecisão. Precisamente por sua cara de pergunta. Foi uma imagem, uma imagem qualquer. E durou poucos segundos. Mas a pergunta ficou em minha memória, e ela não tem forma, é uma pergunta invisível: eu sei que ela está aqui, pois ela me faz coçar, embora talvez jamais consiga encontra-la. Foi um fato banal, repito, muito banal. Caminhava eu nestes últimos momentos da viagem e alguns metros a frente vi um homem sentado na calçada (nem era bem uma calçada, já que não havia calçamento, diria talvez uma estrada para pedestres, mas receio que este termo esteja equivocado). O homem segurava um pequeno violão (mas suponho que esse instrumento possa ter outro nome). Pude ouvir um trecho da música enquanto passava pelo tipo. Da canção não me recordo, pois o que ficou em minha memória foi a imagem desse homem e seus óculos escuros, de costas para as pessoas que passavam, cantando para uma câmera. Só isso. Essa banalidade. E eu pensando: qual a viagem desse cara? Ainda procuro a pergunta.
Subi na bicicleta. Segui para mais um desses caminhos (sempre soube que pedalar era uma maneira de estudar os ritmos, de respeitar os tempos, e ver as paisagens, apreender, sem perder o equilíbrio – e sem jamais ganha-lo). Entre dois caminhos, optei pela esquerda, depois pela direita e segui em linha reta por mais algum tempo enquanto observava que o pneu dianteiro fazia zigue-zagues quase imperceptíveis. E pensava. Cruzei por um homem que vinha em sentido oposto e me perguntei se seria Estevan. Eu ri: que Estevan?!