Eu sei que parece irresponsável, ou pelo menos imprudente, mas não se trata de uma decisão precipitada. Tampouco impulsiva. Fazia duas ou três semanas que andava muito inquieta, e pelo menos uns dez dias que percebera o motivo: queria encontrar o Cardoso. Desde que ele fora embora, cinco meses antes, eu estava atônita. A sensação era estranha, parecia que eu estava pendente no ar, como se houvesse dado um salto numa cama elástica e, chegando ao momento em que o impulso perde força, houvesse ficado lá em cima, pairando. Quisera sentir novamente a gravidade da vida, a força de suas convenções e de seus afazeres, mas estava suspensa. Olhava as coisas e as pessoas lá embaixo, como quem não faz parte de nada, e, embora a sensação não fosse de todo ruim, tornou-se insuportável passados tantos meses.
Minhas manias, sempre de cunho introspectivo, se intensificaram. Agora passava horas pensando em nomes, isto é, na relação entre palavras e coisas. E já não era só uma questão com nomes próprios. Em um desses dias, estava eu pensando na palavra “carne”, dizendo-a de mil maneiras para mim mesma e pensando em sua miríade de sentidos gastronômicos, biológicos e eróticos. Demorei a me dar de que estava no trabalho e, pior, que tinha ao chefe e a Caetano à minha frente, ambos observando e divertindo-se com minha desatenção. Mas claro, acima de tudo, sentia-me ainda intrigada com meu próprio nome, Antônia. Como sempre, me olhava no espelho e tentava enxergar algum rastro da palavra no rosto, nos olhos, no cabelo, enfim, em algo que tenha sugerido ao meu pai a escolha de “Antônia”. Por essa época, apelidei-me de Atônita, ou Antônia Tônita, uma forma de adequar meu nome à situação em que me encontrava. Escrevi várias vezes esse nome em papel, para testar sua veracidade, e comprovei-a sem margem a dúvidas, embora, por puro pudor, o mantivesse absolutamente para mim. Apenas uma vez escapou de minha introspecção. Foi no supermercado. Eu colocava as compras na sacola e o menino do caixa me pedia o número de CPF para colocar na nota fiscal. Eu disse de forma automatizada e, quando me perguntou pelo meu nome, segui no embalo sem perceber: “Antônia Tônita. Ehh. Antônia Merton”. Nem o caixeiro nem ninguém à volta se deu conta ou se interessou pela gafe, mas o episódio me serviu de alerta, sobretudo por que não queria perder o senso de realidade.
Esses e outros pequenos episódios me fizeram refletir sobre a causa de estar eu Atônita, e não precisei de muitos argumentos para me convencer de que essa causa também tinha nome próprio, que era Cardoso. Quando ele foi embora do trabalho (e da minha vida) em um Corsa prata 2006, fiquei triste, nada mais. Depois, nos dias seguintes, senti saudades e a todo momento pensava em como as coisas na revenda seriam diferentes se ele ainda estivesse ali, mesmo que sem falar, como era seu costume. Em termos de atividade e movimento, a Godoy’s Car seguia aparentemente igual, mas a falta da presença discreta do Cardoso tornou-se uma ausência importante, tanto que eu não era a única em senti-la. O Godoy não tardou uma semana para contratar José, o vendedor que veio a substituir o Cardoso, mas uma ausência humana não pode ser substituída. Nós deixamos as coisas para trás, nos interessamos por outras, nos resignamos ao movimento da vida e criamos nossas narrativas para dar-lhe um sentido. Porém jamais substituímos plenamente um afeto por outro.
O problema é que minha resignação não veio. Ao sentir que a vida não se movimentava mais, resolvi tomar a iniciativa, pois essa suspensão começou a dar-me nos nervos. Resolvi buscar o Cardoso. Não sabia o que lhe diria, e não tinha esperanças de que encontrá-lo trouxesse alguma solução durável para mim, mas não me ocorreu outra ideia e, para todos efeitos, a tomada dessa decisão já me trouxe o alívio de sair desse curto-circuito em que estava presa. Portanto, como eu disse, a decisão não foi precipitada, mas sim necessária. Como eu não sabia absolutamente nada da vida do Cardoso fora da Godoy’s Car, foi necessário fazer um trabalho de investigação. Perguntei coisas para o Godoy e para o Kandinsky, que conheciam o Cardoso há mais tempo, porém nenhum deles soube me orientar. Curiosamente, foi a Santa, a faxineira da revenda, quem me deu uma informação útil. Disse que conhecia a irmã do Cardoso das reuniões de sua igreja, e que podia me colocar em contato com ela, se quisesse.
Eis a minha conversa telefônica com a Maria Emília, irmã do Cardoso:
– Alô, é Maria Emília, irmã do Cardoso?
– Sim. Quem é?
– Sou Antônia, ex-colega de trabalho dele. Na Godoy’s Car. Queria saber se você tem notícia de onde ele está, ou se pode me passar alguma informação de contato.
– (tomando tempo para responder) Aconteceu alguma coisa? É sobre o trabalho?
– Não, é pessoal. Gostaria de retomar o contato com ele, se possível.
– (tomando tempo outra vez) Tenho o número dele. Não falamos mais desde que foi embora. Da última vez que ligou, estava em um hotel, em uma Cidadezinha.
– Pois agradeço muito se você puder me passar esse contato!
Já sei que não deve ter soado bem. Uma ex-colega de trabalho buscando encontrar o Cardoso cinco meses depois de ele ter se mandado. Mas que me importava o que a sua irmã iria pensar do caso? Ao Cardoso, pelo menos, sabia que não importaria, portanto nada a declarar, nada a perder. Registrei o número na minha agenda e estava prestes a ligar. Então hesitei. Imaginei ele tendo que atender e falar comigo, sendo que nunca havíamos conversado sobre assuntos pessoais e, principalmente, sendo que eu não sabia exatamente o que queria falar para ele. Achei melhor mandar mensagem por WhatsApp, para tornar o contato um pouco mais indireto e, se possível, menos chocante para ambos.
Eu escrevi “Oi, Cardoso. Sou a Antônia, da Godoy’s. Consegui teu número com a tua irmã. Como estás? Queria saber notícias, enfim, retomar o contato e ”, e fiquei nesse “e”. E o quê, Antônia? Já começava a ficar irritada, pois era de novo essa suspensão, essas reticências, esse corpo parado no ar. Não me sentia confortável com nenhuma forma de contato convencional. A situação era bizarra, precisava de uma interação bizarra. Precisava escrever um negócio nada a ver com o que queria, mas que falasse exatamente aquilo que queria, tipo: “Cardoso, é a Antônia.”. Ponto. Ou “Cardoso, preciso do seu Corsa 2006”, ou “Sabe o que eu aprendi contigo, Cardoso? Aprendi que as pessoas são estúpidas”. Uma por uma, tentei essas ideias. Escrevia, lia e apagava sem enviar.
Diante da impossibilidade de dar seguimento ao plano, tomei a atitude óbvia que vocês já devem estar adivinhando, isto é, tomei o ônibus até a Cidadezinha. O hotel, no centro da cidade, é ordinário, porém agradável. A vista do quarto não era muito atrativa, pois se via apenas alguns prédios velhos e a rua em frente. O único horizonte aparecia entre dois prédios, mostrando um bairro igualmente ordinário que se estende sobre um morro. Nos três dias em que fiquei hospedada ali, passei a maior parte do tempo caminhando na rua, numa esperança vaga de encontrar um Cardoso que ali estivera havia cinco meses. Mas minha mente se ocupava com outras coisas além disso. Pensava em mim (no ar), pensava em meu pai (no vão), pensava em minha mãe (embaixo do chão). Eventualmente, dei com a ideia de que meu nome afinal, era a coisa mais constante em minha vida. Um mistério, é verdade, porém um mistério que não me deixaria jamais. Eu sou Antônia, e isso é ser alguma coisa, é uma forma de não estar nua, ou sozinha.
Na manhã do segundo dia, fui surpreendida por um cara na rua. Era muito magro, senhor de uns 50 e tantos anos, e vinha pela calçada em sentido oposto ao meu. Estava visivelmente feliz e, quando estava prestes a cruzar comigo, me tomou da mão, para dançar. Apesar de minha situação turística, e do humor passivo e contemplativo que levava naqueles dias, não sou de me deixar levar por outras pessoas, ainda mais desconhecidas. Mas houve algo na sua atitude que me cativou imediatamente, e deixar-me levar foi uma reação natural ao seu convite sem palavras. Pensando bem, o certo não seria dizer que havia algo em sua atitude, mas sim que faltava algo em sua felicidade. Pois a felicidade precisa sempre estar acompanhada de algo, de uma causa e de uma expectativa, e esse cara vinha com essa alegria que parecia sem nome, sem passado nem futuro, sozinha e porque sim.
Por um tempo irrastreável, ele cantarolou a valsa e nós dançamos ali na rua. Não era um lugar movimentado, mas havia uma fruteira na esquina, além de duas ou três lojas de pequeno comércio ao longo da quadra. Além disso, na parada de ônibus havia pessoas, e alguns grupos foram conformando uma plateia esparsa na rua. Não posso negar que minha reação à sua alegria foi melancólica. Não dançava para contentá-lo, nem tampouco para brincar ou levá-lo na brincadeira. Dançava pelo contato humano e, paradoxalmente, para me fechar um pouco mais em mim mesma. Ele provia a música e os passos, eu seguia. De fato, simplesmente apoiei a cabeça no seu ombro e me deixei levar até que ele terminou a canção e, ao afetar uma cortesia de encerramento, me deixou sem dizer absolutamente nada. E finalmente, para completar o quadro de confusões sentimentais, preciso dizer que na melancolia houve alguma felicidade. Pacífica.
Uma vez sozinha, me sentei no degrau de uma porta, esperando que o pensamento voltasse ao normal e que as pessoas dispersassem. Nossa dança provocou um pequeno frêmito na Cidadezinha, um arrepio na ordem de suas forças. Porém, levou apenas alguns minutos para ser absorvida pela história plácida desse lugar, que é também uma dança despretensiosa. Depois, me levantei e segui caminhando e me perdendo, até eventualmente reencontrar o hotel. Foi ao entrar em meu quarto que decidi deixar a Cidadezinha no dia seguinte. Já não tinha esperanças de encontrar o Cardoso. Já nem o buscava sequer. A dança dessa tarde aperfeiçoara o propósito da viagem, portanto podia ir-me com uma leve sensação de sucesso, e não ousaria pedir nada mais.
No dia seguinte, aconteceu o óbvio que vocês já devem estar adivinhando. O Cardoso me ligou.
– Alô, Antônia? É o Cardoso.
– (tomando tempo para responder) Oi, Cardoso. Como você conseguiu meu número?
– Minha irmã me ligou. Disse que você anda me procurando. Precisei ligar pro Godoy para conseguir o seu contato.
– (tomando tempo outra vez)
– E ontem topei com um espetáculo seu. Na rua. Resolvi ligar e…
– Olha, vim aqui procurar você, ao azar. Sua partida deixou algo aberto, não sei.
– (tempo, tempo) Vem me visitar. Moro no bairro que está no morro à frente do hotel, mas proponho a você um jogo. Não lhe direi o endereço. Apenas direi que minha casa é a última do bairro. Se esperar até a noite, poderá ver claramente sua posição desde a janela do quarto, pois surge como uma luz isolada no meio do morro. Desta forma, você teria que se perder até conseguir me encontrar. O que acha?
– (tempo, tempo, tempo) Eu vou.
– Eu espero.
Duas coisas fiquei ruminando, depois dessa ligação. Primeira: depois do episódio da dança em público, o Cardoso deve ter me seguido pelas ruas da Cidadezinha, pois afinal sabia em que hotel e em que quarto estava hospedada. Segunda: essa fora a primeira conversa pessoal entre eu e Cardoso. O que tirar disso? Nada, pois não houve nenhuma manifestação de opinião, desejo, intenção, nada. Tudo era suposição minha, inclusive a suposição de que Cardoso também supunha algo.
Esperei. Ao final da tarde, pus a poltrona na frente da janela, para ver a luz surgir no meio do morro, enquanto o sol sumia, mas adormeci a meio caminho. Despertei em sobressalto, olhei a hora (dez e pouco), olhei pela janela. A luzinha aparecia isolada e não deixava dúvida, pois entre ela e o aglomerado luminoso que conformava o bairro havia de fato uma estreita faixa de escuridão.
Peguei a jaqueta e saí. Atravessei a rua, contornei um dos prédios velhos que impedia minha visão de dei de cara a várias ruelas iguais, cada uma delas inaugurando à sua maneira o bairro que ocupava o morro. Já não podia ver a luz que buscava, e aqui me detive.
A paisagem sonora era escassa, mas dava vazão à profundidade do bairro: cachorros latindo em pontos dispersos, alguns ruídos de motores de veículos arrancando ao longe, uma partida de futebol não muito longe de onde estava. Grilos, sapos, um par de televisões em casas que me circundavam e, de vez em quando, vozes que falavam, gritavam ou gargalhavam. Todos esses sons, desconexos e intermitentes, compunham um quadro de entranhas, de cruzamentos e fragmentos de coisas onde eu não cabia. E no além de tudo isso, devia de estar o Cardoso esperando por mim, sentado em uma cadeira ao lado dessa maldita luz e por causa desse maldito jogo. E eu me deixava levar, me imiscuía com tantas coisas alheias sem saber por que. Na contramão da valsa que dançara com o cara da rua, agora, ao ar livre da noite e já perto do objetivo que me trouxera à Cidadezinha, me sentia presa, forçada a agir contra a minha vontade. Subitamente, senti raiva do Cardoso, e mais raiva ainda de mim mesma, por construir esses castelos de ideias que, afinal, são apenas porões de desejos desarticulados, que redundam em ações absurdas.
Passou uma menina, passeando com seu cachorro.
– Está perdida, moça? Precisa de alguma ajuda?
(Desta vez, tomei tanto tempo para responder que, quando cheguei a proferir minha frase, creio que a menina já não estava mais ali):
– Não. Eu sei onde estou.
Voltei ao hotel, peguei minhas coisas e fui à rodoviária. Voltei no ônibus das 23h e isso aconteceu há três dias. De lá para cá, sinto que o jogo do Cardoso, ao invés de desaparecer, cresceu. E sinto que agora esse jogo é meu também. Sigo esperando uma mensagem sua, mas não me sinto ansiosa. O próximo passo pode levar outros cinco meses.